"Realmente, amo na mulher não aquilo que ela é por si mesma, mas a maneira como se aproxima de mim, aquilo que ela representa pra mim."
... e a medida que os anos passavam, já sentia quase medo de revê-la, pois sabia que nos encontraríamos num lugar em que Lucie não seria mais Lucie e que eu não teria mais como reatar o fio. Não quero dizer com isso que havia deixado de amá-la, que a esquecera, que sua imagem desbotara; ao contrário; ela morava em mim dia e noite, como uma silenciosa nostalgia;
E como Lucie se tornara para mim um passado definitivo (que na condição de passado vive sempre e como presente está morto), lentamente ela perdia para mim sua aparência carnal, material, concreta, para cada vez mais se desfazer em lenda, em mito escrito sobre pergaminho e escondido numa caixa de metal depositada no fundo da minha vida.
Talvez por isso mesmo o impensável se tornara possível: minha incerteza diante de seu rosto, na cadeira do cabeleireiro. Por isso ainda, nessa manhã tive a impressão de que o encontro não fora real; que ele também deveria ter se desenrolado no nível de lenda, de oráculo ou de adivinhação. Se ontem à noite a presença real de Lucie me perturbou, transportando-me subitamente para o tempo distante em que ela reinava, nesta manhã de sábado eu apenas me perguntei, com o coração tranqüilo repousado pelo sono): por que a reencontrei? O que significa esse acaso? O que ele tem a me dizer?
As histórias pessoais, além de acontecerem, também significam alguma coisa? Apesar de todo o meu ceticismo, sobrou-me um pouco de superstição irracional, como a curiosa convicção de que todo acontecimento que me sucede comporta também um sentido, que ele significa alguma coisa; que por sua própria aventura a vida nos fala, nos revela gradualmente um segredo, que se oferece como um enigma a ser decifrado, que as histórias que vivemos formam ao mesmo tempo a mitologia de nossa vida e que essa mitologia detém a chave da verdade e do mistério. É uma ilusão? É possível, é mesmo verossímil, mas não posso reprimir essa necessidade de decifrar continuamente minha própria vida.
... O encontro de ontem com Lucie tinha, afinal de contas, apagado e sufocado meu interesse por Helena, que fora tão intenso poucos dias antes. Esse interesse, agora, era apenas a lembrança de um interesse; apenas um sentimento de dever em relação a um interesse perdido.
Trechos de "A Brincadeira" - Milan Kundera
... e a medida que os anos passavam, já sentia quase medo de revê-la, pois sabia que nos encontraríamos num lugar em que Lucie não seria mais Lucie e que eu não teria mais como reatar o fio. Não quero dizer com isso que havia deixado de amá-la, que a esquecera, que sua imagem desbotara; ao contrário; ela morava em mim dia e noite, como uma silenciosa nostalgia;
E como Lucie se tornara para mim um passado definitivo (que na condição de passado vive sempre e como presente está morto), lentamente ela perdia para mim sua aparência carnal, material, concreta, para cada vez mais se desfazer em lenda, em mito escrito sobre pergaminho e escondido numa caixa de metal depositada no fundo da minha vida.
Talvez por isso mesmo o impensável se tornara possível: minha incerteza diante de seu rosto, na cadeira do cabeleireiro. Por isso ainda, nessa manhã tive a impressão de que o encontro não fora real; que ele também deveria ter se desenrolado no nível de lenda, de oráculo ou de adivinhação. Se ontem à noite a presença real de Lucie me perturbou, transportando-me subitamente para o tempo distante em que ela reinava, nesta manhã de sábado eu apenas me perguntei, com o coração tranqüilo repousado pelo sono): por que a reencontrei? O que significa esse acaso? O que ele tem a me dizer?
As histórias pessoais, além de acontecerem, também significam alguma coisa? Apesar de todo o meu ceticismo, sobrou-me um pouco de superstição irracional, como a curiosa convicção de que todo acontecimento que me sucede comporta também um sentido, que ele significa alguma coisa; que por sua própria aventura a vida nos fala, nos revela gradualmente um segredo, que se oferece como um enigma a ser decifrado, que as histórias que vivemos formam ao mesmo tempo a mitologia de nossa vida e que essa mitologia detém a chave da verdade e do mistério. É uma ilusão? É possível, é mesmo verossímil, mas não posso reprimir essa necessidade de decifrar continuamente minha própria vida.
... O encontro de ontem com Lucie tinha, afinal de contas, apagado e sufocado meu interesse por Helena, que fora tão intenso poucos dias antes. Esse interesse, agora, era apenas a lembrança de um interesse; apenas um sentimento de dever em relação a um interesse perdido.
Trechos de "A Brincadeira" - Milan Kundera