domingo, 12 de agosto de 2012

Do Esquecimento e do Interesse

"Realmente, amo na mulher não aquilo que ela é por si mesma, mas a maneira como se aproxima de mim, aquilo que ela representa pra mim."

... e a medida que os anos passavam, já sentia quase medo de revê-la, pois sabia que nos encontraríamos num lugar em que Lucie não seria mais Lucie e que eu não teria mais como reatar o fio. Não quero dizer com isso que havia deixado de amá-la, que a esquecera, que sua imagem desbotara; ao contrário; ela morava em mim dia e noite, como uma silenciosa nostalgia;

E como Lucie se tornara para mim um passado definitivo (que na condição de passado vive sempre e como presente está morto), lentamente ela perdia para mim sua aparência carnal, material, concreta, para cada vez mais se desfazer em lenda, em mito escrito sobre pergaminho e escondido numa caixa de metal depositada no fundo da minha vida.

Talvez por isso mesmo o impensável se tornara possível: minha incerteza diante de seu rosto, na cadeira do cabeleireiro. Por isso ainda, nessa manhã tive a impressão de que o encontro não fora real; que ele também deveria ter se desenrolado no nível de lenda, de oráculo ou de adivinhação. Se ontem à noite a presença real de Lucie me perturbou, transportando-me subitamente para o tempo distante em que ela reinava, nesta manhã de sábado eu apenas me perguntei, com o coração tranqüilo repousado pelo sono): por que a reencontrei? O que significa esse acaso? O que ele tem a me dizer?

As histórias pessoais, além de acontecerem, também significam alguma coisa? Apesar de todo o meu ceticismo, sobrou-me um pouco de superstição irracional, como a curiosa convicção de que todo acontecimento que me sucede comporta também um sentido, que ele significa alguma coisa; que por sua própria aventura a vida nos fala, nos revela gradualmente um segredo, que se oferece como um enigma a ser decifrado, que as histórias que vivemos formam ao mesmo tempo a mitologia de nossa vida e que essa mitologia detém a chave da verdade e do mistério. É uma ilusão? É possível, é mesmo verossímil, mas não posso reprimir essa necessidade de decifrar continuamente minha própria vida.

... O encontro de ontem com Lucie tinha, afinal de contas, apagado e sufocado meu interesse por Helena, que fora tão intenso poucos dias antes. Esse interesse, agora, era apenas a lembrança de um interesse; apenas um sentimento de dever em relação a um interesse perdido.

Trechos de "A Brincadeira" - Milan Kundera

sábado, 11 de agosto de 2012

Eu sei que me deparo com algumas situações na vida, oportunidades, que eu me sentiria covarde senão topasse!
"Todas as situações capitais da vida acontecem uma vez, são sem retorno." Milan Kundera.

"Será que se pode mudar toda uma atitude diante da vida pela úncia razão de se ter sido injustiçado?"

"(Dava a impressão de escolher um vocabulário com duplo sentido, prática tão  ridícula quanto animadora.)"

Do Imaginário

"Sempre imagino minha mãe no céu. Não, não creio mais em Deus, na vida eterna, nem em coisas semelhantes. Não se trata de fé. Trata-se do imaginário. Não sei por que deveria abandoná-lo. Sem isso, me sentiria órfão. Vlasta me censura por ser sonhador. Parece que não vejo as coias como elas são. Absolutamente; eu as vejo como elas são, mas, além das coisas visíveis, vejo outras coisas. Não é a toa que existe o imaginário. É dele que é tecido o nosso mundo interior."

A Brincadeira - Milan Kundera

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Pertencer


Um amigo meu, médico, assegurou-me que desde o berço a criança sente o ambiente, a criança quer: nela o ser humano, no berço mesmo, já começou.

Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça.

Se no berço experimentei esta fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus.

Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso.

Com o tempo, sobretudo os últimos anos, perdi o jeito de ser gente. Não sei mais como se é. E uma espécie toda nova de "solidão de não pertencer" começou a me invadir como heras num muro.

Se meu desejo mais antigo é o de pertencer, por que então nunca fiz parte de clubes ou de associações? Porque não é isso que eu chamo de pertencer. O que eu queria, e não posso, é por exemplo que tudo o que me viesse de bom de dentro de mim eu pudesse dar àquilo que eu pertenço. Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos - e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o! Não querendo me ver em situações patéticas e, por uma espécie de contenção, evitando o tom de tragédia, raramente embrulho com papel de presente os meus sentimentos.

Pertencer não vem apenas de ser fraca e precisar unir-se a algo ou a alguém mais forte. Muitas vezes a vontade intensa de pertencer vem em mim de minha própria força - eu quero pertencer para que minha força não seja inútil e fortifique uma pessoa ou uma coisa.

Quase consigo me visualizar no berço, quase consigo reproduzir em mim a vaga e no entanto premente sensação de precisar pertencer. Por motivos que nem minha mãe nem meu pai podiam controlar, eu nasci e fiquei apenas: nascida.

No entanto fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança.

Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe. Então, sim: eu teria pertencido a meu pai e a minha mãe. Eu nem podia confiar a alguém essa espécie de solidão de não pertencer porque, como desertor, eu tinha o segredo da fuga que por vergonha não podia ser conhecido.

A vida me fez de vez em quando pertencer, como se fosse para me dar a medida do que eu perco não pertencendo. E então eu soube: pertencer é viver. Experimentei-o com a sede de quem está no deserto e bebe sôfrego os últimos goles de água de um cantil. E depois a sede volta e é no deserto mesmo que caminho!

Clarice Lispector

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo.

Clarice Lispector

Aos babacas

Há uma certa espécie de homem, desses que se acham e enchem a boca pra falar que abrem a porta do carro pra mulher, to dispensando!

Eu posso muito bem abrir a porta do carro, tenho braços fortes e sou capaz!

Agora se você homem dessa espécie quer ser gentil, então comporte-se dessa forma ao papel inteiro, pague a conta do restaurante, pegue a garota em casa ao sairem juntos e ligue no dia seguinte. Agora o mais importante mesmo é seja amável, tenha consideração e saiba como tratar uma mulher especial do começo ao fim.

domingo, 5 de agosto de 2012

Da motivação

Dessa noite em diante, tudo em mim se transformou; tornei-me de novo habilitado; de repente uma arrumação foi feita em mim, como num quarto, e alguém vivia ali. O relógio da parede, com os ponteiros parados havia muitos meses, repentinamente fazia ouvir de novo o seu tique-taque. Isso era importante: o tempo, que até então passara como uma corrente indiferente, do nada em direção a outro nada (já que eu estava numa pausa!), sem ponto de referência, sem medida, pouco a pouco readquiria sua aparência humanizada: recomeçava a se articular e a se contar regressivamente. Subitamente passei a dar valor às licenças para deixar o quartel, e os dias se tornaram degraus de uma escada que eu subia para encontrar Lucie.

A Brincadeira - Milan Kundera

Do Quem Sou Eu?

"Mas quem era eu de fato? Sou obrigado a repetir: eu era aquele que tinha muitas caras.

Durante as reuniões, era sério, entusiasta e convicto; desenvolto e provocador em companhia dos colegas; laboriosamente cínico e sofisticado com Marketa; e, quando estava só (quando pensava em Marketa), era humilde e encabulado como um colegial.

Essa última cara seria a verdadeira?

Não. Todas eram verdaderiras: eu não tinha, a exemplo dos hipócritas, uma cara autêntica e outras falsas. Tinha muitas caras porque era moço e porque não sabia eu mesmo quem era e quem queria ser. (No entanto, a desproporção existente entre todas essas caras me dava medo; a nenhuma delas aderia por completo e por trás delas evoluía desajeitado, às cegas.)

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DA IMAGEM

Comecei a compreender que não havia nenhum meio de retificar a imagem da minha pessoa, desqualificada por um tribunal supremo dos destinos humanos; compreendi que essa imagem (por menos que se parecesse comigo) era infinitamente mais real do que eu mesmo; que ela não era de maneira alguma minha sombra, mas que eu é que era a sombra da minha imagem; que não era possível acusá-la de não se parecer comigo, mas que era eu o culpado dessa falta de semelhança; e que essa falta de semelhança, enfim era minha cruz, uma cruz que eu não poderia passar a ninguém e que estava condenado a carregar.

Não obstante, não quis recapitular. Quis realmente carregar minha dessemelhança: continuava a ser aquele que haviam decidido que eu não era.

A Brincadeira - Milan Kundera
Naqueles dias de conversar bobagem, chego na minha mãe e falo:

- Mãe porque você me pôs no mundo, só pra sofrer...

Quando minha irmã responde:

- Mas foi você que foi lá e foi o espermatozóide mais rápido.

Quem mandou? (risos) =/