Meu querido Artur da Távola
Onze de maio. Manhã luminosa de domingo. Fosse num domingo passado e eu estaria me preparando para encontrar-me com você no programa "Quem tem medo de música clássica", na TV Senado, altar onde adoro meus deuses. Você era o sacerdote, era música. Você sorria e convidava as crianças a se assentar e ouvir. Você era um me
stre bondoso. Alguns pensam que música clássica é coisa para adultos esnobes. Você, ao contrário, sabia que até as crianças gostam dela. Num dos seus programas, você revelou que era ainda criança quando pela primeira vez a música clássica o assombrou -foi a "Rapsódia Húngara nº 2", de Liszt. E, desde então, você não parou mais de se assombrar. Faz alguns domingos você já estava diante do "Grande Mistério", fiquei sabendo depois. O programa foi a repetição de um programa antigo. Lá estava você cheio de vida exercendo a função que mais amava, a de mestre de música clássica. Você acreditava que a música clássica, além de nos dar a alegria da beleza, tinha também o poder de produzir a bondade. Ouvindo música, a alma fica mais mansa. E você sorria aquele sorriso aberto ao explicar as coisas mais simples, o fagote, o pífaro, as cordas, o contraponto. Mais que uma experiência estética, era uma magia:você ficava inteiro possuído pela música, o que aparecia evidente no seu rosto, nos seus olhos -que vagavam pelo espaço à procura de palavras para dizer o indizível. O seu coração estava cansado. Não conseguia bater com forças próprias. Então você, numa decisão de feiticeiro, escolheu a 5ª Sinfonia de Beethoven. Ah! A 5ª Sinfonia, que se inicia com aqueles quatro acordes tremendos. Os entendidos dizem que esses quatro acordes são o "destino que bate à porta". De fato, naquele momento o destino estava batendo à sua porta... Talvez você imaginasse que o seu coração poderia ser ressuscitado pela força daqueles quatro acordes de força insuperável. E, depois dos quatro acordes, o coração se enchia de vida, a música se acelerava, corria, galopava... Foi assim que eu sempre o vi: corpo e alma identificados com a beleza da música. Mas os olhos não vêem a mesma coisa. William Blake, num aforismo, disse que "o tolo não vê a mesma árvore que o sábio vê". E Bernardo Soares explica por que: "O que vemos não é o que vemos, é o que somos". Eu o vi com o que sou, olhos de quem ama a música. Mas alguns o vêem com olhos diferentes, também verdadeiros, e você aparece então como político integro, crítico de televisão, jornalista. Li com atenção o material que a Folha lhe dedicou (10 de maio, A-14). Não sei se você, de onde está, o leu também. Eu o procurei no meio das palavras. Sabe que a palavra "música" não aparece mencionada nem uma vez? Achei isso um esquecimento lamentável. Eles se lembraram do que você era como guerreiro, sempre em luta pela justiça. O que é muito bom. Mas se esqueceram de que, na sua utopia, a única função da política é abrir espaço para a beleza. Quanto a mim, eu me lembrarei sempre de você sorridente e feliz ao final do programa, quando você dava sua última lição, como se fosse um mantra ao final de uma liturgia sagrada: "Música é vida interior. E quem tem vida interior jamais padecerá de solidão"
Autor: Rubem Alves
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